A gente sabe que se tocar naquele fio desencapado é choque garantido,
como da última vez,mas a gente toca. A gente sabe que certos adubos são
infalíveis para fazer a nossa dor crescer, mas a gente aduba. A gente
sabe os tons emocionais que desarmonizam a pintura da tela de cada dia,
mas a gente escolhe exatamente esses para pintar, mesmo dispondo de
outros tantos na nossa caixa de lápis de cor. A gente sabe a medida do
tempero e a desmedida, como sabe o sabor resultante de cada uma. Por
histórico, a gente sabe a resposta muito antes de refazer a pergunta,
mas a gente refaz ( ...) Vamos combinar que muitas vezes não há segredo
algum, inimigo algum, interrogação alguma, nenhuma entidade obsessora
além da nossa auto sabotagem. A gente sabe que esticar a corda costuma
encolher o coração, mas a gente estica. A gente sabe que nos trechos de
inverno é necessário se agasalhar, mas a gente se expõe à friagem. A
gente sabe que não pode mudar ninguém, que só podemos promover mudanças
na nossa própria vida, mas a gente age como se esquecesse completamente
dessa percepção tão sincera. A gente lembra os lugares de dor mais aguda
onde já esteve e como foi difícil sair deles, mas, diante de
circunstâncias de cheiro familiar, a gente teima em não aceitar o óbvio,
em não se render ao fluxo, em não respeitar o próprio cansaço."
(Ana Jácomo) In " Armadilhas"
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